O ministro Tarso Genro diagnosticou outro dia na Folha de S.Paulo (Fala D'Alema) a anemia orgânica e intelectual da esquerda diante da crise econômica planetária. O diagnóstico foi certeiro. Os críticos do liberalismo e do imperialismo ("globalização") não poderiam sonhar com um cenário mais favorável: a desregulamentação do capitalismo e a atrofia do Estado não conduziram a humanidade ao paraíso prometido nos anos todos em que a liberdade do capital foi entronizada como dogma número zero da civilização.
Entretanto, apesar das excepcionais condições objetivas, faltam as subjetivas. A esquerda parece contentar-se com o prazer de ver o adversário intelectualmente na lona. Satisfaz-se com o "eu bem que avisei". Propostas? Alternativas? Só nos limites do keynesianismo. O sujeito se levanta, incha a veia do pescoço, proclama a crise do "neoliberalismo" e da "globalização" e apresenta sua plataforma revolucionária: aumentar o investimento público. Parece pouco? É pouco. E isso quando a fórmula não vem acompanhada da liberalíssima "necessidade imperiosa de reduzir impostos". Daí que pessoas com ambições políticas e intelectuais além da média -como é o caso do ministro Tarso Genro- possam estar frustradas. Aliás, a crítica dele fez-me lembrar da décima-primeira e última tese de Karl Marx sobre Ludwig Feuerbach (o da foto). A tese é de Marx, mas quem a incluiu nas obras do filósofo alemão foi seu parceiro, Friedrich Engels:
"Os filósofos têm apenas interpretado o mundo de maneiras diferentes; a questão, porém, é transformá-lo [o mundo]."
O que mais se vê hoje em dia é gente usando o brochinho do teutônico mas tocando a vida como se a tese tivesse sido escrita ao contrário. Antes, tratava-se de transformar o mundo. Agora, diante da suposta impossibilidade de mudar o mundo, o prazer está em interpretá-lo. Daí a satisfação em poder dizer o "eu não disse?". Por que eu falo sobre a "impossibilidade" de mudar o mundo? O PT travou ao longo de anos uma feroz luta política em torno da reforma agrária. Sempre ressaltou que a concentração da propriedade fundiária no Brasil era um dos pilares da nossa cruel (falta de) distribuição de renda. Quando o PT estava na oposição, atacava sistematicamente os governos por distribuírem pouca terra, ajudando a perpetuar o latifúndio. Bem, o PT chegou ao governo e sua política agrária em nada difere do que vinha sendo feito antes. Distribui uma terrinha aqui e ali, enquanto promove a renegociação amiga das dívidas dos grandes proprietários rurais e é sócio da modernização conservadora, cujo exemplo mais emblemático é a indústria do etanol de cana-de-açúcar.
Eu conheço esse pessoal há mais de trinta anos, e sei desde lá atrás que eles não dão a mínima para a reforma agrária. Que sempre a consideraram uma reivindicação pequeno-burguesa, superada historicamente pelo avanço do capitalismo no campo brasileiro, em parceria com a grande propriedade (via prussiana). Daí que eu não tenha me decepcionado, como se decepcionou por exemplo o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST):
"O presidente [Luiz Inácio] Lula [da Silva] diz por aí que ele é um aliado dos sem-terra. E também que é aliado dos latifundiários e do agronegócio. Então ele não é amigo de ninguém, ele é amigo dele mesmo. Ele não é nosso inimigo, mas também não é nosso amigo. Nós não convidamos o governo Lula para nossa festa porque vamos evitar constrangimentos."
A declaração é de João Paulo Rodrigues, da liderança nacional do MST. A festa de que ele fala? O Encontro Nacional da organização camponesa. Pois é, o radicalismo "socialista" dos críticos da reforma agrária nos anos 70 do século passado acabou nisto: na sociedade com o latifúndio capitalista. Ainda sobre a reforma agrária, é sintomático que o ministro de Lula mais preocupado com o assunto não seja nenhum petista, mas Roberto Mangabeira Unger. Que parece conhecer a importância de expandir a fronteira agrícola e ocupar os limites do Brasil com base na agricultura familiar. Escrevo aqui sobre a reforma agrária, mas poderia escrever sobre os bancos. Sobre a impotência governamental diante do oligopólio financeiro e da drenagem que o cartel promove na riqueza nacional. Ou poderia escrever sobre o contraste entre as declarações bombásticas de soberania e a submissão às pressões internacionais pela demarcação irracional de terras indígenas em área de fronteira. Ou sobre a ausência de uma reforma urbana. Quase uma década de governo petista terá se passado sem que o país progrida na democratização da propriedade nas cidades. Vejam que, exceto a demarcação das terras indígenas (assunto em que o ministro Tarso e eu temos posições bastante diferentes), são todos assuntos da agenda do PT na oposição. Eu faço este blog desde meados de 2005, quando voltei ao jornalismo depois de mais de uma década de "exílio interno". Sempre escrevi aqui que Lula faz um bom governo. Mas para a biografia dos protagonistas talvez seja insuficiente. Daí que de vez em quando certos assuntos saltem para a agenda, como que saídos do nada. É o caso do caso Cesare Battisti. Outro exemplo é o desejo recorrente de reinterpretar o alcance da Lei de Anistia.
As coisas se passam como se de tempos em tempos, por espasmos, o presente se esforçasse para encontrar algum elo com o passado, para desesperadamente agarrar a mão do acrobata que balança no trampolim acima. Mas esse esforço de "coerência" só é visto em assuntos laterais. Ainda que úteis, nas circunstâncias. O governo Lula agora investiu mais de R$ 70 milhões no Fórum Social Mundial que acontece em Belém do Pará. O governo Lula nada tem a apresentar ali em assuntos como a reforma agrária, a reforma urbana ou o controle do sistema financeiro. Então, vai falar da punição aos torturadores e do refúgio concedido a Cesare Battisti. Ou, talvez, de como a aliança com o fundamentalismo religioso pode ser um caminho para o socialismo -por representar, quem sabe?, o elo mais fraco na cadeia imperialista. Não deixa de ser uma saída. Momentânea, mas certamente uma saída. Especialmente para quem se especializou em ler ao contrário a última tese de Marx (ou de Engels) sobre Feuerbach.
fonte: Blog do Alon
Entretanto, apesar das excepcionais condições objetivas, faltam as subjetivas. A esquerda parece contentar-se com o prazer de ver o adversário intelectualmente na lona. Satisfaz-se com o "eu bem que avisei". Propostas? Alternativas? Só nos limites do keynesianismo. O sujeito se levanta, incha a veia do pescoço, proclama a crise do "neoliberalismo" e da "globalização" e apresenta sua plataforma revolucionária: aumentar o investimento público. Parece pouco? É pouco. E isso quando a fórmula não vem acompanhada da liberalíssima "necessidade imperiosa de reduzir impostos". Daí que pessoas com ambições políticas e intelectuais além da média -como é o caso do ministro Tarso Genro- possam estar frustradas. Aliás, a crítica dele fez-me lembrar da décima-primeira e última tese de Karl Marx sobre Ludwig Feuerbach (o da foto). A tese é de Marx, mas quem a incluiu nas obras do filósofo alemão foi seu parceiro, Friedrich Engels:
"Os filósofos têm apenas interpretado o mundo de maneiras diferentes; a questão, porém, é transformá-lo [o mundo]."
O que mais se vê hoje em dia é gente usando o brochinho do teutônico mas tocando a vida como se a tese tivesse sido escrita ao contrário. Antes, tratava-se de transformar o mundo. Agora, diante da suposta impossibilidade de mudar o mundo, o prazer está em interpretá-lo. Daí a satisfação em poder dizer o "eu não disse?". Por que eu falo sobre a "impossibilidade" de mudar o mundo? O PT travou ao longo de anos uma feroz luta política em torno da reforma agrária. Sempre ressaltou que a concentração da propriedade fundiária no Brasil era um dos pilares da nossa cruel (falta de) distribuição de renda. Quando o PT estava na oposição, atacava sistematicamente os governos por distribuírem pouca terra, ajudando a perpetuar o latifúndio. Bem, o PT chegou ao governo e sua política agrária em nada difere do que vinha sendo feito antes. Distribui uma terrinha aqui e ali, enquanto promove a renegociação amiga das dívidas dos grandes proprietários rurais e é sócio da modernização conservadora, cujo exemplo mais emblemático é a indústria do etanol de cana-de-açúcar.
Eu conheço esse pessoal há mais de trinta anos, e sei desde lá atrás que eles não dão a mínima para a reforma agrária. Que sempre a consideraram uma reivindicação pequeno-burguesa, superada historicamente pelo avanço do capitalismo no campo brasileiro, em parceria com a grande propriedade (via prussiana). Daí que eu não tenha me decepcionado, como se decepcionou por exemplo o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST):
"O presidente [Luiz Inácio] Lula [da Silva] diz por aí que ele é um aliado dos sem-terra. E também que é aliado dos latifundiários e do agronegócio. Então ele não é amigo de ninguém, ele é amigo dele mesmo. Ele não é nosso inimigo, mas também não é nosso amigo. Nós não convidamos o governo Lula para nossa festa porque vamos evitar constrangimentos."
A declaração é de João Paulo Rodrigues, da liderança nacional do MST. A festa de que ele fala? O Encontro Nacional da organização camponesa. Pois é, o radicalismo "socialista" dos críticos da reforma agrária nos anos 70 do século passado acabou nisto: na sociedade com o latifúndio capitalista. Ainda sobre a reforma agrária, é sintomático que o ministro de Lula mais preocupado com o assunto não seja nenhum petista, mas Roberto Mangabeira Unger. Que parece conhecer a importância de expandir a fronteira agrícola e ocupar os limites do Brasil com base na agricultura familiar. Escrevo aqui sobre a reforma agrária, mas poderia escrever sobre os bancos. Sobre a impotência governamental diante do oligopólio financeiro e da drenagem que o cartel promove na riqueza nacional. Ou poderia escrever sobre o contraste entre as declarações bombásticas de soberania e a submissão às pressões internacionais pela demarcação irracional de terras indígenas em área de fronteira. Ou sobre a ausência de uma reforma urbana. Quase uma década de governo petista terá se passado sem que o país progrida na democratização da propriedade nas cidades. Vejam que, exceto a demarcação das terras indígenas (assunto em que o ministro Tarso e eu temos posições bastante diferentes), são todos assuntos da agenda do PT na oposição. Eu faço este blog desde meados de 2005, quando voltei ao jornalismo depois de mais de uma década de "exílio interno". Sempre escrevi aqui que Lula faz um bom governo. Mas para a biografia dos protagonistas talvez seja insuficiente. Daí que de vez em quando certos assuntos saltem para a agenda, como que saídos do nada. É o caso do caso Cesare Battisti. Outro exemplo é o desejo recorrente de reinterpretar o alcance da Lei de Anistia.
As coisas se passam como se de tempos em tempos, por espasmos, o presente se esforçasse para encontrar algum elo com o passado, para desesperadamente agarrar a mão do acrobata que balança no trampolim acima. Mas esse esforço de "coerência" só é visto em assuntos laterais. Ainda que úteis, nas circunstâncias. O governo Lula agora investiu mais de R$ 70 milhões no Fórum Social Mundial que acontece em Belém do Pará. O governo Lula nada tem a apresentar ali em assuntos como a reforma agrária, a reforma urbana ou o controle do sistema financeiro. Então, vai falar da punição aos torturadores e do refúgio concedido a Cesare Battisti. Ou, talvez, de como a aliança com o fundamentalismo religioso pode ser um caminho para o socialismo -por representar, quem sabe?, o elo mais fraco na cadeia imperialista. Não deixa de ser uma saída. Momentânea, mas certamente uma saída. Especialmente para quem se especializou em ler ao contrário a última tese de Marx (ou de Engels) sobre Feuerbach.
fonte: Blog do Alon
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