Não visitava Brasília havia mais de trinta anos. Voltei para o Distrito Federal em 2002, convidado pelo Correio Braziliense para escrever um texto sobre o biênio 68/69, quando morei na Capital e fui estudante de um colégio de aplicação, o extinto CIEM.
Estava ansioso para rever os lugares que havia frequentado; a cidade, que na década de 60 suscitava medo e angústia, agora era um espaço de liberdade, sem os ameaçadores tanques do exército e viaturas policiais que circulavam nos Eixos, na estação rodoviária, na entrada do campus da Universidade de Brasília.
Antes de irmos para o hotel, meu amigo do Correio deu uma volta pelo Plano Piloto. Me lembrei do poema Brasília enigmática, de Nicolas Behr:
Brasília, faltam exatos 3.232 dias
para o nosso acerto de contas
me deves um poema
te devo um olhar terno
na beira do paranoá pego um pedaço de pau
entre um pneu velho e um peixe morto
(uma garça por testemunha)
não me reconheces
não te reconheço.
Não me reconheces, não te reconheço. E então paramos diante do Lago Norte, de onde avistei a cidade que escondia sua periferia pobre: as outras cidades habitadas pelos filhos e netos de imigrantes que construíram a NOVACAP. Quase não reconheço a Brasília da década de 60, mas minha memória girava e dava cambalhotas e eu podia rever cenas de brutalidade e terror.
De longe, eu contemplava a Asa Norte quando notei, perto da beira do lago, uma figura sentada entre dois homens altos e fortes. Me aproximei da beira e olhei o ombro caído e a cabeçorra de um homem muito idoso. Um velho magro, sentado numa cadeira de rodas, contemplando um lago. Era um quadro quase sublime, um desses quadros que inspiram um poema sobre a decadência, o fim, a fugacidade de tudo. Perguntei ao meu amigo quem era aquele pobre ancião.
Você quer saber?
Claro, respondi.
É Alfredo Stroessner, nosso mais ilustre refugiado político, respondeu meu amigo.
Senti um calafrio. Pensava que era apenas um lance de humor do meu amigo. Mas não. Ali estava ele, o personagem em carne e osso, um dos ditadores mais sanguinários desta América.
Ele contemplava a água calma do lago, como se a superfície escura refletisse o passado glorioso do homem agora sentado, um passado encharcado de sangue e sofrimento. Sangue e sofrimento do povo paraguaio.
Antes de escrever esta crônica, li alguns artigos sobre a investigação dos crimes de Alfredo Stroessner, que governou seu país no período de 1954 a 1989. O relatório da Comissão de Verdade e Justiça, presidida pelo bispo católico Mario Medina é um inventário de atrocidades: 128 mil vítimas de perseguições, quase 20 mil registros de tortura e detenções arbitrárias, mais de 3 mil exílios forçados, além de centenas, talvez milhares de mortos e desaparecidos.
Lembrei da leitura de Yo el Supremo, de Augusto Roa Bastos, um dos mais importantes romances históricos da América Latina. A loucura feroz e homicida do ditador Gaspar Rodrígues de Francia só encontra paralelo no poder tirânico, absoluto e não menos homicida de Alfredo Stroessner. Yo el Supremo é ambientado na primeira metade do século 19, mas pode ser lido como se estivesse situado no longo e terrível governo de Stroessner, reeleito várias vezes presidente em eleições fraudadas pelo partido Colorado, que era um grotesco arremedo de uma agremiação política democrática. Por isso o livro de Roa Bastos foi proibido no Paraguai e na Argentina, quando esses dois países foram governados por ditadores.
O velho sentado numa cadeira de rodas pensava nos milhares de paraguaios assassinados, torturados, exilados? Nos índios e fazendeiros cujas terras foram usurpadas e doadas aos amigos do ditador? Ou pensava com nostalgia no tempo em que Ele, o Supremo, era o próprio Estado e seu aparelho repressivo? O Estado que, este sim, é o supremo terrorista da era moderna, capaz de assassinar deliberadamente crianças, mulheres e civis indefesos. Não por acaso os arquivos descobertos depois que Stroessner deixou o poder são conhecidos como "Os arquivos do terror".
Alfredo Stroessner contemplava todas as manhãs o Lago Norte. Ele morou quase 17 anos em Brasília, onde morreu no dia 16 de agosto de 2006. Não sei se dormia com sonhos nostálgicos do poder tirânico, ou se despertava com os gritos de homens e mulheres torturados pelos subordinados do ditador.
Aos leitores que desconheciam a longa e tranquila temporada desse ilustre senhor em Brasília, convém lembrar que, em 1989, o governo brasileiro concedeu abrigo político a Alfredo Stroessner. Não sei se isso aconteceu no governo Sarney ou Collor, mas isso tem alguma importância? Isso muda o nosso pendor à bondade e à política de boa vizinhança?
Milton Hatoum é escritor, autor dos romances Órfãos do Eldorado, Dois Irmãos, Relato de um Certo Oriente e Cinzas do Norte.
Publicado em Terra Magazine
Estava ansioso para rever os lugares que havia frequentado; a cidade, que na década de 60 suscitava medo e angústia, agora era um espaço de liberdade, sem os ameaçadores tanques do exército e viaturas policiais que circulavam nos Eixos, na estação rodoviária, na entrada do campus da Universidade de Brasília.
Antes de irmos para o hotel, meu amigo do Correio deu uma volta pelo Plano Piloto. Me lembrei do poema Brasília enigmática, de Nicolas Behr:
Brasília, faltam exatos 3.232 dias
para o nosso acerto de contas
me deves um poema
te devo um olhar terno
na beira do paranoá pego um pedaço de pau
entre um pneu velho e um peixe morto
(uma garça por testemunha)
não me reconheces
não te reconheço.
Não me reconheces, não te reconheço. E então paramos diante do Lago Norte, de onde avistei a cidade que escondia sua periferia pobre: as outras cidades habitadas pelos filhos e netos de imigrantes que construíram a NOVACAP. Quase não reconheço a Brasília da década de 60, mas minha memória girava e dava cambalhotas e eu podia rever cenas de brutalidade e terror.
De longe, eu contemplava a Asa Norte quando notei, perto da beira do lago, uma figura sentada entre dois homens altos e fortes. Me aproximei da beira e olhei o ombro caído e a cabeçorra de um homem muito idoso. Um velho magro, sentado numa cadeira de rodas, contemplando um lago. Era um quadro quase sublime, um desses quadros que inspiram um poema sobre a decadência, o fim, a fugacidade de tudo. Perguntei ao meu amigo quem era aquele pobre ancião.
Você quer saber?
Claro, respondi.
É Alfredo Stroessner, nosso mais ilustre refugiado político, respondeu meu amigo.
Senti um calafrio. Pensava que era apenas um lance de humor do meu amigo. Mas não. Ali estava ele, o personagem em carne e osso, um dos ditadores mais sanguinários desta América.
Ele contemplava a água calma do lago, como se a superfície escura refletisse o passado glorioso do homem agora sentado, um passado encharcado de sangue e sofrimento. Sangue e sofrimento do povo paraguaio.
Antes de escrever esta crônica, li alguns artigos sobre a investigação dos crimes de Alfredo Stroessner, que governou seu país no período de 1954 a 1989. O relatório da Comissão de Verdade e Justiça, presidida pelo bispo católico Mario Medina é um inventário de atrocidades: 128 mil vítimas de perseguições, quase 20 mil registros de tortura e detenções arbitrárias, mais de 3 mil exílios forçados, além de centenas, talvez milhares de mortos e desaparecidos.
Lembrei da leitura de Yo el Supremo, de Augusto Roa Bastos, um dos mais importantes romances históricos da América Latina. A loucura feroz e homicida do ditador Gaspar Rodrígues de Francia só encontra paralelo no poder tirânico, absoluto e não menos homicida de Alfredo Stroessner. Yo el Supremo é ambientado na primeira metade do século 19, mas pode ser lido como se estivesse situado no longo e terrível governo de Stroessner, reeleito várias vezes presidente em eleições fraudadas pelo partido Colorado, que era um grotesco arremedo de uma agremiação política democrática. Por isso o livro de Roa Bastos foi proibido no Paraguai e na Argentina, quando esses dois países foram governados por ditadores.
O velho sentado numa cadeira de rodas pensava nos milhares de paraguaios assassinados, torturados, exilados? Nos índios e fazendeiros cujas terras foram usurpadas e doadas aos amigos do ditador? Ou pensava com nostalgia no tempo em que Ele, o Supremo, era o próprio Estado e seu aparelho repressivo? O Estado que, este sim, é o supremo terrorista da era moderna, capaz de assassinar deliberadamente crianças, mulheres e civis indefesos. Não por acaso os arquivos descobertos depois que Stroessner deixou o poder são conhecidos como "Os arquivos do terror".
Alfredo Stroessner contemplava todas as manhãs o Lago Norte. Ele morou quase 17 anos em Brasília, onde morreu no dia 16 de agosto de 2006. Não sei se dormia com sonhos nostálgicos do poder tirânico, ou se despertava com os gritos de homens e mulheres torturados pelos subordinados do ditador.
Aos leitores que desconheciam a longa e tranquila temporada desse ilustre senhor em Brasília, convém lembrar que, em 1989, o governo brasileiro concedeu abrigo político a Alfredo Stroessner. Não sei se isso aconteceu no governo Sarney ou Collor, mas isso tem alguma importância? Isso muda o nosso pendor à bondade e à política de boa vizinhança?
Milton Hatoum é escritor, autor dos romances Órfãos do Eldorado, Dois Irmãos, Relato de um Certo Oriente e Cinzas do Norte.
Publicado em Terra Magazine
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