Lincoln Ferreira Secco
Ninguém fala mal de certas pessoas. Não é de bom tom. São unanimidades. Especialmente depois de passadas para a história (decerto, uma história construída pelos admiradores e seguidores dessas pessoas). A minha geração (que despontou na política nos anos 80) ficou fatigada muito cedo. Derrotada em 1984, ela acostumou-se à reprodução da tragédia sem fim que tem sido o desmantelamento do Estado em nome de uma administração “eficiente”. Alunos semi-analfabetos, doentes jogados em filas, professores e estudantes espancados, aposentados caindo nas ruas, doentes sem remédio, criminosos (de vários níveis) impunes são olvidados na reconstituição de biografias limpas, de homens grados de nossa terra que “engrandeceram” o Estado de São Paulo.
Discutir a memória e a imagem de uma personalidade histórica é sempre um desafio para o historiador. Maior se as marcas dessa personalidade são ainda vivas, visíveis e afetam (pioram) as nossas vidas.
Na história recente, a memória paulista tem sido construída em torno de dois modelos políticos: Paulo Maluf e Mário Covas.
O primeiro, embora ainda vivo está politicamente morto (ou quase). Não encontrará guarida na história senão como exemplo pior de dilapidação do patrimônio público sem as compensações que êmulos seus deixaram no passado, como Antonio Prado, Prestes Maia e Faria Lima.
O segundo foi revelado como competente e ético e seria o paradigma da boa reforma do Estado. Do casamento do “social” com a responsabilidade fiscal e a eficiência administrativa. Estranhamente, ele encarna melhor essas supostas virtudes do que um político muito mais importante em termos nacionais: Fernando Henrique Cardoso. Talvez porque a história política paulista sempre tenha corrido um pouco à margem (e às vezes contra) a política nacional, espelhando mais o seu industrialismo desenfreado do que o trabalhismo nacionalista e estatizante do período 1930-1980 – Afinal, as elites paulistas (não o povo) odiaram Getúlio Vargas.
Mario Covas (o homem concreto) certamente apresentou qualidades. Foi um dos campeões da luta pela democracia e, no PSDB, tentou inclinar seu partido à esquerda durante o Governo Collor. Seu discurso barroco (como o chamava Florestan Fernandes) não invalidava essa história de compromisso democrático.
Todavia, ele precisa ser entendido pelos seus atos administrativos e posturas políticas reais e não imaginadas pelos seus áulicos e seguidores. Se o situarmos na história política brasileira dos últimos 30 anos, nós poderemos ver Mario Covas em duas díades. No que tange à díade São Paulo – Brasil, ele foi mais à esquerda na política nacional (como senador, principalmente) e mais conservador na política paulista. Na díade temporal poderíamos dividi-lo entre o período ditatorial (quando ele, de fato, juntou-se aos defensores da democracia radical) e o período “democrático” quando ele tendeu ao conservantismo.
As condições históricas jogaram Covas numa dimensão conservadora demasiada fazendo coincidir sua hegemonia política com o comando do executivo estadual paulista justamente nos anos 90. Esse entrecruzamento de duas linhas conservadoras na sua biografia política foi ainda facilitado pelo clima neoliberal daquele período. Eis o Covas reivindicado pelo PSDB paulista.
Ninguém gosta de lembrar que o governador Covas usou métodos ilegais para reprimir greves de professores. Prendeu e exonerou aqueles que estavam organizados politicamente em grupos de inconformados radicais. Privatizou o patrimônio público (bancos, empresas, rodovias) e conviveu com focos de corrupção em seu governo. Não bastasse isso, ele cometeu dois erros que pesarão em sua biografia: a desestruturação da educação pública de primeiro e segundo graus em nosso Estado e o fim das ferrovias de nosso interior.
Os paulistas já sabem identificar analfabetos funcionais pelo nome: eles pertencem à “geração Covas”. Passaram por escolas lotadas (pois Covas fechou escolas!!!), com professores que, além de mal pagos, apanham da polícia e até dos alunos e sob o famigerado sistema “pedagógico” de aprovação automática sem as bases materiais condizentes com tal prática.
Por fim, quem viaja pelo interior de São Paulo vê belas estações de trem destruídas e abandonadas.
E o historiador Fernand Braudel dizia que a França foi construída com escolas e ferrovias...
Chegará a hora e a vez de personalidades como Covas acertar as contas com a história.
De minha parte, eu repito o lema do velho Marx: “Disse e salvei a minha alma”.
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