16 abril, 2008

Esquerdas e Democracia

João Negrão
Artigo publicado pelo jornal "Cruzeiro do Sul" no dia 18 de março.
O recente afastamento de Fidel Castro do poder em Cuba, somado à queda do Muro de Berlim, a desagregação da União Soviética e da Iugoslávia, entre outros fatos do final do século XX, recolocaram para as esquerdas -- talvez com intensidade nunca vista -- a questão da democracia. É válido afirmar que um dos motivos que levaram aqueles regimes à derrocada foi a falta de democracia, aquela velha democracia "burguesa", caracterizada pelo sufrágio universal, pelas liberdades políticas, pelo império da lei e pela competição política.
Àgnes Heller, filósofa húngara, discípula de Lucáks, afirma, num artigo chamado "Democracia formal e democracia socialista", publicado no Brasil em 1980, que a democracia formal pode tanto ser a base de uma sociedade capitalista quanto de uma sociedade socialista. Entretanto, adverte, "esse caráter formal não deve ser confundido com o aspecto ilusório ou não autêntico que alguns quiseram lhe atribuir. Ao contrário, a democracia formal representa uma inovação muito importante, que permite assegurar a permanência do caráter democrático de um Estado, do qual ela é a primeira condição indispensável. Todos os que querem substituir essa democracia formal pelo que qualificam de democracia real, na qual reúnem global e indistintamente o Estado e a sociedade, renunciam, por esse próprio fato, à democracia".
Heller afirma ainda que "em sua época, Rosa de Luxemburgo respondeu, em relação às críticas feitas à democracia formal, que não havia liberdades burguesas, mas simplesmente liberdade dos cidadãos. Efetivamente, sem sofrer a menor alteração em seus princípios, a democracia formal pode ser convertida em democracia socialista. Os princípios básicos da democracia formal mostram o caminho a seguir em situações conflitivas e é um meio para chegar-se a soluções, sem impor nenhuma restrição ao conteúdo de nossas aspirações sociais".
Para a autora, "a ação reivindicatória dos trabalhadores desempenhou papel de primeira importância, como também os movimentos feministas. As greves políticas tinham como objetivo, incessantemente, a obtenção do sufrágio universal, quer dizer, da possibilidade para os operários e para as mulheres de estarem representados dentro dos órgãos legislativos do Estado. Não foi o capitalismo, mas uma luta permanente contra o capitalismo que deu à democracia formal um valor universal."
Carlos Nelson Coutinho, nessa mesma linha, afirma, no importante livro "A democracia como valor universal", que "é verdade que muitas liberdades democráticas em sua forma moderna (o princípio da soberania popular, o reconhecimento legal do pluralismo etc.) têm nas revoluções burguesas, ou, mais precisamente, nos amplos movimentos populares que terminaram (mais ou menos involuntariamente) por abrir o espaço político necessário à consolidação e reprodução da economia capitalista, as condições históricas da sua gênese; mas é igualmente verdade que, para o materialismo histórico, não existe identidade mecânica entre gênese e validade".
Mas a democracia não está isenta de riscos. Ágnes Heller alerta para os perigos que rondam esta forma de governo: " os problemas das dificuldades para sobreviver são provenientes, em resumo, do fato de que o complexo institucional de um regime de democracia formal -- precisamente porque se trata de uma democracia -- permite a aparição e o desenvolvimento interno de instituições antidemocráticas".
Para a autora, "na atualidade apresentam-se como perigosos três tipos de instituições, capazes de converterem em aleatória a sobrevivência das democracias: as firmas multinacionais, os exércitos modernos e todas as instituições de caráter policial ou para-policial, sem ter importância se sua jurisdição é de domínio 'interno' ou de caráter internacional".
O pensador italiano Norberto Bobbio também levanta problemas e dificuldades que a democracia enfrenta: sobrevivência de oligarquias, do poder invisível e da razão de Estado, sem contar as promessas não cumpridas do ideal democrático, como a educação dos cidadãos e a ampliação dos espaços políticos.
A opção pela democracia como método e como constituinte mesma do conceito de socialismo não significa um caminho de certezas. Assumir esta opção significa abrir mão de compreender a História como um desenrolar sucessivo e inexorável rumo ao progresso -- como acreditavam os positivistas -- ou ao comunismo -- como afirmam inúmeras correntes marxistas.
Aceitar a democracia como "regra do jogo" significa, fundamentalmente, acreditar que o socialismo é uma possibilidade e não uma realidade histórica inelutável, inscrita não se sabe por quem no vir a ser da humanidade. Significa também ter em conta as várias possibilidades componentes, num momento histórico determinado, do processo de luta política.

Um comentário:

Fábio Cassimiro disse...

Acho que o socialismo, ou a democracia realmente dita, deve ir muito além do direito ao voto.

Direito ao voto apenas é o que temos na sociedade burguesa. Se isso for democracia então eu não sou democrata.

Evidentemente, não sou contra O voto, mas apenas o voto não pressupõe que exista liberdade e igualdade.

PS: entre a queda do muro de Berlim e o afastamento de Fidel passaram-se duas décadas, e o regime cubano não foi derrubado.