As noções de direita e esquerda estão mais vivas que nunca, ainda que conceitos como “luta de classes” e jargões como “a favor do proletariado” , “contra a burguesia” e coisas do gênero não signifiquem mais nada, restando apenas como elementos da história do século XIX e parte do XX.
Os conceitos mais diretamente ligados ao marxismo perderam a força, desgastados pelos próprios marxistas que os utilizaram sem pudor em debates infindáveis, enquanto que as noções de direita e esquerda, anteriores ao marxismo, não sofreram o mesmo desgaste. Nos anos oitenta e principalmente na década de noventa, as noções de direita e esquerda foram questionadas. A idéia básica era a de que, com o fim do comunismo (leia-se: fim da URSS e seu regime) e com a crise da social democracia que, enfim, havia perdido espaço para políticas do tipo da de Reagan e de Thatcher, não haveria mais como entender as diferenças entre os que estavam a favor de mudanças – antes chamados “de esquerda” – e os que estavam contra mudanças – antes chamados “de direita”. Todavia, tanto quanto a URSS, também as políticas de Reagan e Thatcher passaram, e as necessidades de mudanças recobraram suas forças. Ao menos há dois ou três anos, as pessoas no mundo todo, em época de eleições, começam a utilizar novamente as palavras “direita” e “esquerda”. Todavia, é claro, há alguma mudança nisso tudo.
Ser uma pessoa de esquerda ou de direita, antes da década de oitenta, era uma postura relativa a adoção ou não de políticas sociais por parte do Estado. Ao menos na Europa e em boa parte do mundo, isso era lido dessa maneira. Nos Estados Unidos, a idéia era um pouco diferente. É que a esquerda de modelo europeu, no mundo todo, sempre colocou a necessidade de igualdade em primeiro plano, defendendo a liberdade de uma maneira ambígua e, às vezes, descuidada. Nos Estados Unidos, mesmo após o New Deal de Roosevelt, a liberdade continuou a ser o elemento primordial da esquerda, enquanto que a igualdade, não raro, era interpretada como algo próprio do “coletivismo” vindo da direita fascista e do comunismo da URSS. Não à toa, os americanos de esquerda, que na Europa seriam tomados como social-democratas, sempre foram chamados, nos Estados Unidos, de liberais.
Essa terminologia parecia que poderia mudar, mas a mudança, se é que houve, não durou uma década. Estamos de volta aos trilhos de uma conversação política que novamente adota as expressões “direita” e “esquerda” para apontar para falas, atitudes e pensamentos sociais e políticos. Todavia, devemos reconhecer, no momento em que vivemos, que não seria ruim nos esforçarmos para não deixar que tal conversação voltasse a imperar sem um salto qualitativo. Exatamente por isso, opto escrever aqui algumas notas sobre o uso desse vocabulário.
Podemos, hoje, ainda estarmos confusos sobre a questão da ênfase na liberdade ou na igualdade quanto ao uso do termo “esquerda”. Podemos, é claro, estamos ainda sem rumo quanto ao uso desses termos em relação às políticas sociais do Estado e suas relações com a economia. Afinal, não sabemos ao certo o que seria ser de esquerda sem falar em algum tipo de fortalecimento do Estado em favor dos mais pobres, enquanto maioria, e não saberíamos o que é a direita mais extremada sem remetê-la à defesa do aumento do poderio do Estado em favor de um regime elitista e, certamente, sob economia capitalista, com monopólios internos. Por isso, nesses termos, sentimos que estamos mais nos anos trinta do século XX do que nos anos que deveríamos estar, ou seja, na nossa época mesma, cronologicamente falando.
Mas a confusão diminui quando esquecemos essas relações mais diretamente envolvidas com a economia e nos atemos ao “olhar social” de cada um.
Quando nos atemos ao olhar social, então, neste caso, as expressões “direita” e “esquerda” funcionam bem. Diante de uma criança pobre, negra, que rouba uma maçã e, então, é vítima de grupos de extermínio, duas atitudes são possíveis, e elas caracterizam bem, para nossos dias, o que diz uma pessoa de esquerda e o que diz uma pessoa de direita.
A pessoa de esquerda acredita que a criança que rouba uma maçã está com fome, e que se estivesse na escola e com apoio familiar a partir de uma família subsidiada por políticas públicas vindas do Estado, ela desenvolveria sua boa índole natural e não roubaria a maçã. A pessoa da direita acredita que a criança que rouba uma maçã pode, talvez, fazer isso por fome, e que se estivesse na escola não estaria fazendo tal coisa, mas que, enfim, sua predisposição natural para fazer o errado e não o certo seria relativamente independente de apoios sociais possíveis. Levando ao limite tais atitudes, o observador de esquerda tenderia a não incriminar a criança, enquanto que o observador da direita, ainda que possa, como o de esquerda, reclamar do Estado, tenderia a não isentar a criança de culpa.
É fácil notar que esses exemplos são corriqueiros. O homem comum ainda adota, para ser de esquerda ou de direita, pressupostos naturalistas, vindos do confronto de idéias do século XVIII e XIX. Para a esquerda, há ainda um Rousseau a empurrar a idéia de “bom selvagem”. Para a direita, há ainda um forte aparato teórico dos criminalistas do século XIX para garantir a idéia de índole má ou boa, ligada a traços físicos, o que, no limite, poderia chegar à biologia nazi-fascista da “raça pura” e das “raças superiores” e “inferiores”.
Essas duas posições são “burguesas”, digamos assim. Não há aí um confronto entre a posição naturalista da burguesia e a posição ligada à defesa do direito divino dos reis, da nobreza. O que existe, no caso do nosso senso comum, são posições que apelam às disposições naturais para julgar atos morais de terceiros, principalmente de crianças e adolescentes. Os vocabulários, aqui, são diferentes na superfície, mas no leito, eles funcionam segundo jargões filosóficos essencialistas. As crianças teriam uma essência, ou natureza, montada para usarem de uma razão (inata ou desenvolvida socialmente) que discerne as coisas, mas tal razão estaria impedida de atuar em seu pleno desenvolvimento por causa de inúmeros fatores histórico-sociais degradantes – eis aí a linguagem da esquerda. Uma boa parte das crianças teria uma essência, ou natureza, pervertida, e por mais que as ajudemos, nada haveria de se fazer com elas, pois terminariam nas penitenciárias – e nestas, talvez seja melhor eliminá-las, e não deixar toda a sociedade pagar para ficarem presas e tentar uma recuperação que nunca viria – eis aí a linguagem da direita. É difícil confundir as coisas aqui. Quando ouvimos isso, sabemos que estamos funcionando com discursos claros da esquerda e da direita. Mas é triste ver que ambas as posições ainda são essencialistas. Não nos libertamos, ainda, de procurarmos resposta a uma pergunta que aos mais contemporâneos não tem sentido, a saber, “o que é o homem?”.
Não me importo para onde o vocabulário da direita caminha. Mas, para meu uso particular, me importo muito com o vocabulário da esquerda. Creio que deveríamos tornar o vocabulário da esquerda mais útil. Para tal, imagino que um bom passo seria colocar de sobreaviso a questão da igualdade, e começarmos a fazer como a esquerda americana, ou seja, dar atenção à liberdade. Uma pessoa de esquerda não deveria usar termos que viessem a enfatizar a igualdade somente. Deveria, sim, usar termos que protegessem a liberdade. Deveriam usar jargões capazes de ampliar as liberdades, ampliando direitos velhos e criando novos, portanto. Penso que quando cuidamos da liberdade, todo o resto termina por vir junto, enquanto que o inverso é menos provável.
Assim, não deveríamos falar, diante da criança que rouba uma maçã, que se igualarmos as crianças através de seja lá quais forem os mecanismos, teremos tal cena menos freqüente. Deveríamos falar que a proteção da liberdade de uma criança, de modo que ela não entre para a prisão que é pertencer a uma gang ou a um grupo excluído, é nossa prioridade. Não deixá-la perder a liberdade para uma série de prisões – do uso de preconceitos ao uso de drogas – seria um bom passo para não deixá-la perder a liberdade de ir e vir, que pode acontecer após sua primeira infração às leis.
Caso comecemos a entender que é a liberdade que está em risco, e que é ela, afinal, que a direita teme mais do que qualquer outra coisa, nós, os que querem se qualificar como “de esquerda”, estaremos mais francamente afinados com os nossos objetivos de fazermos o futuro um lugar onde teremos “versões melhores de nós mesmos” (Rorty).
A direita consegue falar em liberdade dada pelo mercado, mas não a pratica, pois sempre está em guerra para conseguir benesses do Estado e, assim, não raro termina por defender o monopólio. A direita consegue falar em liberdade de expressão, mas não consegue levar isso adiante nem mesmo dentro de casa, pois ainda continua conservadora nos costumes. A direita, enfim, não consegue imaginar uma sociedade em que tenhamos menos punições, mais liberdade geral, pois ela, no fundo, talvez tenha uma dificuldade enorme de enfrentar a contingência, o desconhecido, o improvável. Não à toa a direita é afinada com o pensamento empresarial, que longe de ser o comportamento de um Barão de Mauá ou de um Monteiro Lobato, é o comportamento daqueles que dão aulas em Escolas de Administração de Empresas e acreditam que podem usar (ou ensinar) técnicas de gerenciamento que iriam controlar não só os empregados, mas estariam na direção de poder prever o futuro das empresas. A direita é controladora. Ela não gosta da liberdade. Todas as vezes que ela defende a liberdade, age de maneira hipócrita, falsa. A liberdade, portanto, ou é a da esquerda ou vai ficar sem defensores.
É claro que uma esquerda igualitária vai dizer que sem igualdade não haverá liberdade. Mas, quando diz isso, tal esquerda já não é mais esquerda. Ela poderá estar de braços dados com a direita. Pois ela tentará criar mecanismos de igualdade social de modo descuidado e, então, não raro, esses mecanismos de igualdade social se tornarão mecanismos de igualação social. Fidel, Lênin, Stalin, Hitler, Franco e todos os homens que estiveram à frente de movimentos de direita e esquerda extremados terminaram por se diferenciar pouco entre si por uma razão simples: entre estes, os de esquerda deixaram o apreço pela liberdade de lado, e investiram na igualdade social que, no limite vingou apenas como igualação.
A esquerda americana não marxista agiu de modo diferente. Ela sempre temeu tanto o macartismo quanto o regime soviético. Já por volta dos anos vinte ela trocou o marxismo e a idéia de revolução por filosofias ad hoc, como o pragmatismo, para então começar a perceber que o melhor regime para quem se dizia de esquerda não era o comunismo, mas a democracia.
É claro que este tipo de esquerda tem poucas vozes no cenário internacional. Rorty foi uma de suas vozes nos Estados Unidos. Habermas cumpre esse papel na Europa. Mas, contra eles, sempre existirão tipos como Chomsky, que tornam pessoas de esquerda descuidadas com as questões das liberdades individuais na medida em que acirram ânimos que não precisam ser acirrados.
Quando Chomsky sai pelo mundo para fomentar o anti-americanismo, ele faz um desserviço à esquerda. Ele despreza o estado de direito dos Estados Unidos. Ele iguala os Estados Unidos, sob qualquer governo, e em toda a sua população, como um estado plutocrático e bélico. Com isso, ele não consegue nunca participar de processos internos capazes de fazer a esquerda crescer no interior dos Estados Unidos. Ele consegue ter voz em congressos terceiro-mundistas que pouco fazem para mudar concretamente o mundo. Mas não consegue ter voz ativa no interior de movimentos que poderiam, por exemplo, dar força a um candidato como Obama, na atual conjuntura americana. Faz mais pela esquerda, hoje, Cornel West. Este, por sua vez, não quebra a identidade entre ser de esquerda e ser americano. Esse tipo de identidade, a identidade entre ser de esquerda e, ao mesmo tempo, ser visto como alguém que não é inimigo da nação, é fundamental para qualquer um que quer mudanças em favor da liberdade em seu país. Essa foi uma das principais lições pregadas por Rorty.
Passemos ao Brasil. A liberdade era um elemento que não importava muito para as esquerdas brasileiras. Todavia, quando nasceu o PT, isso parecia que iria mudar. Os membros do PT, ao menos as correntes majoritárias, pareciam que iriam caminhar corretamente. Foram bons tempos. Não à toa, portanto, o PT podia, pela boca de Suplicy, cobrar de Fidel Castro a necessidade de eleições livres em Cuba.
Mas com o desprestígio do PT diante de si mesmo, tudo isso se perdeu. A bandeira da liberdade, agora, é entregue de bandeja para a direita. Hoje, no Senado de nossa República, o PFL, que agora usa o nome de Democratas (DEM), posa como defensor das liberdades ao condenar a ação do Estado de deportar os boxeadores cubanos. O PT e a nossa esquerda oficial perderam não só a bandeira da moralidade, perderam uma bandeira mais importante ainda, a da liberdade.
É claro que alguns podem dizer que estou errado, pois a bandeira da moralidade seria maior que a da liberdade. Mas não é. Todo americano honesto de esquerda já se decepcionou com o seu candidato democrata. Todo americano honesto de direita já se decepcionou com seu candidato republicano. Todavia, na medida em que a democracia envelhece, não é a questão moral que se sobressai, é a questão da liberdade que fica. É ela que dá as raízes para a esquerda que faz política real, não a esquerda liderada por Chomsky, que faz política só fora dos Estados Unidos e, assim, nada consegue mudar nem dentro e nem fora.
No Brasil, houve um tempo em que dizíamos que estávamos melhor, em termos de esquerda, do que os Estados Unidos (e também em relação à Europa). Mas, hoje, é difícil fazer tal afirmação. A esquerda oficial se encastelou no Estado, toda ela agarrada ao cabide de empregos do Governo Lula, e está pouco ligando para as liberdades individuais. A esquerda não oficial é pior, pois é a que se aglutina em torno do PSOL e similares, e que ainda advoga conceitos como “luta de classes” e até mesmo “ditadura do proletariado” . No fundo, são bem menos cuidadosos em relação à liberdade do que os funcionários do PT. Ficamos, então, nessa situação. Não é uma situação invejável.
Temos condições de sair disso? Imagino que nós, de esquerda, se pudermos colocar na ordem do dia jargões libertários, fazemos muito. Erra quem quer defender posições de esquerda e, em vez de ampliar o direito de expressão de todos, quer inventar teoria caducas para justificar aparatos que, no limite, poderão ser usados pela direita, mais tarde, para cercear a liberdade de todos.
Quando mais pudermos cultivar a vontade do brasileiro de ser livre e permitir a liberdade do outro, em todos os sentidos, mais estaremos cumprindo idéias de esquerda, isto é, ideais de uma sociedade futura onde cada um será mais feliz por ser menos mesquinho, mais complexo, mais rico em pensamentos benevolentes, mais próspero na conquista de objetivos e sonhos, mais amoroso.
Paulo Ghiraldelli Jr.